21/08/2012

Nós sempre teremos Paris

publicado também no projeto Idiotidiano (http://idiotidiano.wordpress.com/)

Sempre quis te trazer aqui em casa. Imaginava nós dois sentados no sofá esparramados, sorrindo (felizes) e comendo pipoca. O filme poderia ser qualquer um, já nem me importava se Loucademia de Polícia ou Capitão Blood. Não conseguiria prestar atenção na tela enquanto seu sorriso permanecesse no rosto. Agora você estava aqui do meu lado sem ao menos saber o quanto sonhei com esse dia. Meus pais foram viajar, a casa vazia, a ocasião não poderia ser melhor. O mundo seria nosso essa noite, meu amor.

Tudo seria perfeito se eu não insistisse em querer ouvir sua voz. Para isso tirei a mordaça que cobria sua boca e você começou a gritar nervosa. Mesmo sem conseguir mexer as pernas e os braços, amarrados, seus olhos não paravam de verter lágrimas. Você então começou a gritar tão alto que sua lida voz desafinava rouca. Não tive outra opção que não desferir-lhe três socos. Não pense que isso não doeu em mim, meu amor, pois quase quebrei a mão. Ou você poderia ter facilitado as coisas para nós dois e ter se calado no primeiro soco. Do corte que se abriu em sua têmpora, consegui lamber o pequeno filete de sangue que apareceu.

Senta aqui, meu amor, vamos ver o filme aqui que vai começar. Adiantei os traillers e me inclinei para beijar sua boca. Eu estava hirto de prazer com a proximidade do seu hálito quando me distraí por um segundo o você mordeu meu nariz com toda a força que conseguiu. Quase perdi os sentidos, não conseguia me desvencilhar, nem te puxar pra trás. Te bati, me esperneei, só consegui passar o braço pela mesinha de centro da sala e pegar a primeira coisa que consegui. Não hesitei em te bater com a Torre Eiffel da minha mãe. Usando como um tacape, consegui com que você me soltasse o nariz que já sangrava tanto a ponto de beber meu próprio sangue. Virei a base da torre para trás e desferi cinco golpes com a ponta no seu pescoço. Sua traquéia estava parecendo um zigue-zague quando terminei, cansado, deixando o pesado enfeite de ferro cair ao chão. Seu rosto estava ficando roxo quando tive todo o cuidado de te deitar no sofá.

Ficamos de conchinha, cobri nossos pés e olhando para a tela me dei conta de que perdemos os créditos iniciais. Odeio ver filme começado, mas tendo você ali comigo eu poderia deixar essa passar.

15/08/2012

O menino que não podia pausar

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Assoprou o cartucho e passou a mão por cima do console. Era um velho hábito que remontava mais de dezessete dias. Tirava de cima do console, ainda com cheiro de novo, poeiras imaginárias. Aquele retângulo preto com um detalhe vermelho, meio bordô meio grená de tão bonito que era nem sabia o nome da cor. Ganhou da vó no Natal e 1990 já parecia tão longe e obsoleto diante da tela da TV que agora brilhava com 32 cores simultâneas das 64 disponíveis.

Começou a jogar Alex Kidd e era como se tivesse jogado aquilo a vida inteira. Estava indo bem, estava indo longe pegando motinho e ganhando no joquempô. Pensava em papel, o cara colocava pedra. Pensava em tesoura, o cara colocava papel. Aquilo estava indo bem demais. Nem o calor de 42 graus do verão das férias podia incomodar. Para ele, ali, a sensação térmica era de 38 graus, fácil. Depois de oito horas seguidas de jogo ele já estava muito longe, porém algo começou a incomodar. Os trânsitos intestinais indicavam que atrás daquele controle havia um ser vivo.

Hoje em dia qualquer um esticaria o dedão e meteria um “pause” na tela. Entretanto, o Master System nunca te daria esse luxo. Pausar o jogo quando se joga sozinho é um luxo inimaginável. Mesmo pedir alguém pausar para você poderia acarretar em humilhantes favores a serem cobrados posteriormente. Só foi descoberto às oito da noite quando seus pais chegaram em casa e encontraram o corpo caído tentando se esticar em direção ao console. Desmaiado. Estava desidratado e não conseguiu controlar o próprio intestino.

14/08/2012

Tá Travado

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Aquele dia em que o cursor do Windows vira uma ampulheta eterna. Tá tudo travado de você não conseguir clicar em nada. Apenas o cursor responder ao balanço do mouse a caminho do mar. A setinha ganha uma ampulheta que pode ser animada ou não, dependendo da configuração que o cliente escolher. No início você é paciente e tem fé de que se trata apenas de um mal entendido entre seu computador e o Cosmos. Em três minutos você já se lembra que se esqueceu de fazer backup. Em cinco minutos você se arrepende de ter mastigado a hóstia em 1991. Em seis minutos o suor já ensopou sua camisa com aquelas rodelas embaixo das axilas. Karma ruim, afinal o computador travou tudo porque você estava com catorze abas de pornografia aberta e a ampulheta já te irrita profundamente. Quem inventou essa bagaça de ampulheta? A forma mais primitiva de se medir o tempo, sei lá. O relógio de sol você até entende o mecanismo, vá lá, ainda que não se veja horas à noite. No tempo do relógio de sol eu teria medo da noite, sinceramente. Assim que o sol baixasse eu já estaria dentro da minha caverna ou coisa que o valha rezando pelo amanhecer do dia expulsar as trevas. Aquela ampulheta colada na seta do mouse te deixa nervoso a ponto de você ter medo do escuro medieval e de sacudir o mouse em várias direções da tela para ver se os dois desprendem.

Más notícias: o mouse só vai desprender da ampulheta se você conseguir movimenta-lo a uma velocidade de 88 milhas por hora.