22/02/2011

De olho na comida

Cheguei em casa com algumas compras numa sacola. Coisa que estava precisando para a casa e me ofereci imediatamente para sair para buscar no mercado. Assim que coloquei a sacola em cima da mesa, ela veio furiosa na minha direção como se fosse me agredir. Dizia que já sabia de tudo, que estava me acompanhando a tempos, me seguindo, observando. Gritou, chorou, bateu. Eu não podia acreditar. Aos berros dizia que já sabia que o motivo de ir à rua toda hora era só para comer chocolate escondido. Ela tinha razão, aquela casa era um inferno dietético. Eu vivia num limite insuportável. Me agarrou pela gola e cheirou minha boca. Gritou: amendoim! chocolate com amendoim! canalha!

Minha cabeça ferveu, perdi o controle me lembrando de tudo o que passei nas mãos daquela megera. Todos os limites que ela me impôs e das sobremesas que tive que recusar por sua causa. Gritou que não queria me ver nunca mais. De tão nervoso, babei ao voar em sua direção. Arranquei um dos seus olhos com toda força que consegui naquele momento. De tão possesso fui para o outro olho. Nós dois caídos no chão, comigo por cima e ela tentando lutar em vão. Cavando com os dedos, arranquei seu outro glóbulo com muito custo. Levantei ao ar aquela bola ensanguentada e coloquei na boca, mastigando-a. Uma tinta escura vazou da minha boca enquanto eu gargalhava.

18/02/2011

Discutindo a relação

Um homem está sentado lendo uma revista quando chega um
amigo que o reconhece de longe.

MARIANO (V.O.)
Denis! Grande figura!

DENIS abaixa e revista e levante-se para cumprimentar
MARIANO que vem chegando. Os dois apertam as mãos e se
abraçam.

DENIS
Você por aqui, rapaz?

MARIANO
Pois é, irmão. De vez em quando não
tem jeito. Sabe como é?

DENIS
Sei sim! Mas me conta ai como vão
as coisas?

MARIANO
Então, senta ai que eu te conto.

Os dois sentam-se cada um em uma cadeira, um ao lado do
outro.

DENIS
Senta que lá vem história.

MARIANO
Ouve e me diz se eu tenho razão ou
não.

DENIS
Sou todo ouvidos.

MARIANO
Lembra da Claudinha, aquela com
quem eu estava saindo?

DENIS
A Claudinha amiga da Denise.
Lembro, lógico! O que houve? Não
estão mais?

MARIANO
Não. Veja como são as mulheres. A
gente estava se curtindo, coisa e
tal. Falavámos no MSN há tempos até
que tomei coragem e chamei para
sair. Jantar, cinema, coisa e tal,
pacote básico. Nada que pudesse
comprometer nenhuma performance.

DENIS
À prova de erros!

MARIANO
Aparentemente, veja bem. Fomos ao
cinema, filme de comédia romântica
e depois um jantarzinho. Nada podia
dar errado aquela noite. A conversa
fluía como nunca, eu estava
realmente inspirado. Ela ria das
minhas piadas, sacava minhas
referências. Tudo indicava um
namoro promissor, conspirava ali
coisa de casamento e o caramba.
Universo em alinhamento, amigo!

DENIS
O que houve então?

MARIANO
Foi quando fiz menção a uma coisa,
não lembro qual agora, do que
estava estava fazendo com meus
bonsais...

DENIS
Mas peraí! Você falou de Bonsai?

MARIANO
Falei...

DENIS
No primeiro encontro?

MARIANO
Falei...

DENIS
E ela?

MARIANO
Ela disse que preferia que eu
disesse que era fã de Glee e Gray's
Anatomy, que tomava estrogêneo e
que depilava a virilha do que
cultivar bonsai. Pegou a bolsa e
foi embora.

DENIS
Mas tu também tem cada uma! Esse é
o tipo de coisa que é pra você
deixar dixavado e jurar o contrário
até sob tortura.

A secretária chama o DENIS que se levanta.

DENIS
Toma ai essa revista. Vê se aprende
alguma coisa!

DENIS entrega a revista para MARIANO e sai balançando a
cabeça em reprovação. MARIANO abre a revista, folheando-a.

17/02/2011

A vida vai tão rápido

Suas lembranças eram de sonhar o dia inteiro. Tudo passou como um raio e aquelas lembranças se tornam um borrão. Não pode deixar de se revoltar com o que lhe tiraram: carreira, sucesso e habilidade. Sua conduta era irrepreensivelmente medíocre fora dos rinques. Repetia chorando diante do espelho jamais ter sido tamanho pecador para merecer este castigo físico. Um acidente no qual ninguém se machucou, somente ele que ia no banco de trás dormindo. O carro derrapa no asfalto congelado e bate com a lateral contra um poderoso pinheiro. A lateral do Henrique. A cabeça cortada, fragmentos de vidro nos olhos e um cotovelo esmagado enquanto ninguém mais sofreu nada.

Ele foi um bom momento, pensou. A vida vai tão rápido que só fazemos o que achamos certo. Fechando os olhos e o que passou por sua cabeça foi a história da sua vida. Os bons momentos vão e vêm e tudo aquilo que queria era que durassem um pouco mais. Em sua mente apenas cabia a reflexão sobre os que teve e o por quê deles terem um fim.

Aquele momento com Bia era outro. Desejou ter esse momento para sempre. Como se o tempo parasse se e enquanto prendesse a respiração. Era hora de voltar para casa, o lugar ao qual pertence. Uma terra onde se é permitido sonhar. Com a menina em seus braços se permitiria repensar toda a sua vida longe dos pecados que não cometeu e das penas que cumpriu por isso. Bastava apenas abraçá-la e todas as portas se abririam. Aquela fria e cinza Saint Paul coberta de neve ficou para trás.

O inverno de uma vida se acaba por causa do olhar de ternura cheio de amor e desejo dela. Os dois seguiriam em frente para ver as flores se abrir na primavera. Fechou os olhos e isso passou. Primeiro uma idéia, depois um abraço. E depois a descoberta de que o amor é essencialmente simples.

14/02/2011

Estamos contratando

A minha função nessa empresa é demitir. Não é só isso o que eu faço, mas é algo que sempre sobra para eu fazer. Dona Betina é uma senhora de, sei lá, oitocentos anos. Não aguentou o ritmo, o tranco, de uma cozinha comercial. Deve fazer muito bem suas tortas em casa e farofa com improvisos de banana e o que tiver na geladeira sobrando. Perdi meu tempo com essa cara aqui, chamo para uma reunião e ela traz a filha que é alguma coisa. Ela podia ser advogada, escrevente, astronauta, o que fosse, mas era de uma beleza clássica. Aquilo me desestabilizou. Ninguém poderia ousar uma covardia dessas, afinal era uma reunião de negócios e não um chá em família. Um homem no ramo empresarial deve saber tomar decisões de emergência, li num livro. Não me fiz de rogado e ofereci à jovem, linda, uma visita às nossas dependências. Aproveitando a cozinha já vazia, cravei-lhe por três vezes a faca de oito polegadas no pescoço. A quarta vez não pegou direito e machucou minha mão. Voltando, informei em tom seco e direto que aquela senhora estava demitida.

Never favorited a tweet of mine

Traduzido por Kenia Cris (http://poesiatorta.blogspot.com/)

I would imitate a dromedary just to make you laugh. I would do anything to make you smile, even when you couldn’t, even when you didn’t want to. Making you happy was my lifetime goal, but I guess it was not enough for you, was it? Coldness is essential when it happens, one must think about the smallest details. One will be faced with consequences someday. It may not be today or tomorrow, but there will come a day and I won’t be able to say I was clueless. I climbed the closet and got the old cigar box. A silver and mother of pearl treasure have been kept inside it. The enraged 38 gauge revolver treasure. Two shots, as soon as you looked my way, were enough to throw you against the wall. The blood spot reminded me of an inkblot in Rorschach test, where I could see the image of a love story that ended because you never favorited a tweet of mine.


13/02/2011

A mesa de olmo

Aqui em casa sempre investimos em móveis de qualidade. Na nossa sala temos uma enorme mesa em olmo, um objeto até certo ponto raro porque é trabalhado numa madeira que é muito resistente a esse tipo de intervenção humana. Essa mesa vem dos tempos dos meus avós que a trouxeram da Hungria antes da Segunda Guerra, quando o país encontrava-se em momento de pujança. Por ser o meu objeto favorito dentro de casa por causa dessa história romântica e valor sentimental, eis que faço questão de nos reunirmos sempre que possível em torno desta mesa.

E naquele dia não poderia ser diferente. Guardei a refeição mais especial de nossas vidas para aquele mesa. Nada poderia dar errado e eu cuidei de todos os detalhes. Da comida à iluminação, passando pela música ambiente. Quando ela chegou, o brilho nos seus olhos era notável. Estranhou apenas o fato da mesa estar posta apenas para uma pessoa. Pedi que ela sentasse e que aguardasse as surpresas que a noite reservava. Seu perfume era delicioso como bem posso me lembrar, pois a lembrança olfativa é muito poderosa.

Coloquei diante dela o prato que preparei para ser a entrada. Servi uma taça de vinho e esperei pela sua primeira garfada. Falando agora confesso que me precipitei, talvez estivesse muito ansioso pela ocasião. Mas ela mal terminou a garfada e já saquei meu bastão de baseball à toda força. O bastão sibilou o ar antes de acertar a sua cabeça em cheio. Não esperei reação nenhuma e nem ouvi um gemido antes de desferir todos os golpes que pude com a toda a força que consegui. A mesa era tão boa que nem riscou com as bastonadas que errei, meu avô tinha razão, facilitando todo o trabalho para limpar aquela sujeira. Aquela vaca.

11/02/2011

Champanhe nacional em copo de plástico

Nota do autor: este texto concorreu no concurso de minicontos da editora Guemanisse com o título "Um dia na vida". Não ganhou nada.

Ele sempre saía cedo pela manhã para ir trabalhar. Mochila do notebook, pasta embaixo do braço, camisa para dentro da calça. Antes de cumprir sua jornada diária, ela preparava-lhe o café da manhã e se despedia aos beijos na porta do apartamento esperando o elevador chegar. Trocavam acenos até a porta se fechar para o elevador descer. Ele ia embora, ela suspirava.

Merecido foi que ganhou um dia de folga no trabalho em troca das horas extras cumpridas até então. Acordou mais tarde do que o habitual e pegou a mesa do café já posta. Molhando o pão no café enquanto lia a página de esportes - começava o jornal sempre pelo caderno de esportes -, eis que surge sua mulher já vestida para sair. Deseja bom dia e é desejado. Beija e é beijado. Elogia sua mulher que é bem bonita.

Saía para fazer compras no shopping com a mãe. Enquanto ela esperava o elevador chegar ficou na porta para acenar quando a porta se fechasse. Disse que a amava e que aproveitasse o passeio. Ela mandou um beijo de volta. Houve um silêncio. Ela olhou o botão do elevador ainda aceso. Ele olhou para os pés. Levantou a cabeça e sorriu para a mulher. Ela sorriu de volta. O elevador chegou. A porta abriu. Ela ia embora, ele engoliu em seco.

Fechou a porta de casa assombrado pelo tempo que o elevador demorou a chegar. Percebeu naquele momento como era a vida dentro de seu próprio lar numa manhã de um dia de semana. Sons que não lhe eram familiares como o da construção do prédio ao lado. Cores intensas como a do sol da manhã que prometia o anúncio dos classificados. Cheiros como o da carne assando misturado com o refogado do arroz na cozinha do vizinho.

Era como se tivesse se despedido de uma mulher desconhecida e tivesse entrado na casa errada.

O desespero bateu forte. O coração disparou e as mãos suavam. Uma sensação desagradável lhe atingia naquele momento. Poderia descrever como o medo que vinha após um susto. Um medo de levar outro susto quando o corpo ainda estava crispado em pânico.

Os cabelos do pescoço ainda estavam eriçados quando se virou da porta para a sala que se encontrava mais escura. O janelão que dava para a rua não estava fechado, mas diminuído. Correu até a janela e só conseguiu colocar o rosto pelo buraco que ficara. Sentiu-se olhando pela escotilha de um navio. Tirou rapidamente a cabeça temendo que ficasse presa.

Olhou depressa ao redor para a sala. O sofá, a televisão, a estante de livros e enfeites. Tudo parecia normal. Pegou um porta-retrato com a foto de uma bonita mulher morena posando junto a um avião monomotor. Suando nervoso, acreditava ter ficado louco. Sua mulher não era morena nem nunca chegou perto de um avião. Largou a moldura no chão e seu vidro trincou. Numa outra foto, uma pose do time de hóquei do exército vermelho soviético. Jogou longe, bateu na parede. O vidro se fez em pedaços.

Pegou os livros e folheando o primeiro, percebeu que estava em branco. Nem na capa havia nada escrito. Assim como todos os outros nas prateleiras. Começava a arremessar livros pela sala quando passou a mão no seu chaveiro. Ia sair daquele jeito mesmo. Só de shorts do pijama. Precisava sair dali, precisava correr.

Tentando abrir a porta que o desespero bateu mais forte. Nenhuma das chaves encaixava na fechadura. Aquele era seu chaveiro da sorte desde a sétima série. Não podia falhar agora. Tentou gritar e não lhe saiu nenhum som. Nunca se sentiu tão sozinho. O teto do corredor da porta lhe espremia a cabeça. O cômodo estava diminuindo. Saiu engatinhando quando uma parede se fechou atrás de si.

Correu para o telefone da cozinha que apenas tocava uma canção de vaudeville. Nada de linha. Olhou para a mesa do café que deixara há instantes e viu que seu jornal estava todo azul. Na sua xícara brotara uma orquídea. E nos seus olhos várias lágrimas.

Dentro do quarto do casal percebeu que a porta que bateu com o vento não se abriu mais. Da janela não podia olhar porque seu vidro estava preto. Não conseguiu quebrá-lo nem arremessando o criado mudo. Virou a penteadeira (que sua vó chamava de toucador) no chão. Arrancou a persiana da parede e tirou o colchão da cama.

Arranhou a porta em total descontrole. No auge, chorando, não ouvia a própria voz. Ele chorou ajoelhado entre os destroços do quarto. Prometeu ser uma pessoa melhor.

10/02/2011

Nunca favoritou um tweet meu

Eu imitava um dromedário só para te fazer rir. Fazia de tudo para tirar um sorriso do seu rosto, mesmo quando você não podia, mesmo quando você não queria. Te deixar feliz era a minha meta de vida, mas acredito que isso não te bastou. O sangue frio é fundamental numa hora dessas, pois tudo deve ser pensado nos seus mínimos detalhes. Pagaremos por todas as consequências. Pode não ser hoje ou amanhã, mas o dia chegará e não posso dizer que fui pego desprevenido. Subi no armário e peguei a velha caixa de charutos. Lá dentro guardava o velho tesouro de prata e madrepérola. O raivoso tesouro de calibre 38. Dois tiros assim que você se virou na minha direção bastaram para te jogar contra a parede. O desenho de sangue que ficou lembrava um Teste de Rorschach no qual via a imagem de um amor que se acabou porque você nunca favoritou um tweet meu.

Esperando no bar

Estávamos voltando para casa quando ela resolveu passar no mercado. Algumas compras eram necessárias e até mesmo urgentes, insistia. Eu estava de mal humor e disse que esperaria no bar da frente. Em pé ao balcão beberia cerveja gelada, talvez comesse um pastel frio. Nosso amor já durava oito anos e era desesperador que ninguém decretasse seu fim. Ainda a avistei saindo com duas sacolas tentando se equilibrar como uma balança. Não me mexi para ajudar e esperaria que ela atravessasse a rua para tomar qualquer atitude. Estava cansado e a cerveja gelada ainda por acabar. Ela atravessava a rua meio sem jeito quando a sacola rompeu. Antes mesmo de entender o que tinha rolado no chão, um carro a atropelou. Seu couro cabeludo voou como um escalpo depois da sua cabeça arrastar no chão. Só depois consegui ver as latas de Coca Zero sambando no asfalto até o meio-fio. Aquilo não era tão necessário que justificasse a ida ao mercado.

09/02/2011

Dezesseis chutes por segundo

A cada chute que eu recebia, conseguia ouvir bem o osso se partindo. Um estalo de quebrado para cada pedaço que se esfarelava. Isso tudo a uma velocidade de dezesseis chutes por segundo faz você acreditar que está dentro de uma máquina de lavar roupa. Misturaram roupa colorida com branca e tudo que teremos em instantes é uma grande visão de vermelho. Visão em termos, pois os olhos não conseguirão ficar abertos por mais muito tempo de tão inchados que já estão. Suor e sangue se misturam para encharcar minha roupas enquanto meu corpo já nem sente mais dor. Apenas a angústia de que isso tudo termine logo para que possa, enfim, ficar estendido no chão. Morto.