19/04/2011

Nada de interessante

Deu um jeito para conseguir sair do trabalho mais cedo. Avisou que tinha médico marcado no meio da tarde. Só tinha conseguido aquele horário (era ruim, ele sabia) porque se tratava de um doutor muito concorrido na cidade. Um bom médico judeu de muito conceito. Depois dos trinta, já viu, é ladeira abaixo. Tem que se cuidar, fazer check-up de tempos em tempos e se reciclar com as novas normas ortográficas. Essas manobras não eram problema e ele dava um jeito de fazer isso sempre que podia, tomando cuidado para não banalizar o ato.

Chegou em casa, jogou as chaves na mesa e ligou logo a televisão. Era dia de final de campeonato europeu. Final de temporada era aquela correria e nada como uma consulta estratégica no bolso para sacar uma saída providencial do trabalho. Chegara exatamente no momento das escalações dos times e aproveitou para tirar os sapatos enquanto passava os olhos nos nomes dos jogadores. Fulano de tal não joga hoje, machucado, e um sapato voava pelo canto do apartamento.

Não que Henrique fosse grande fã de futebol, mas a oportunidade de burlar o trabalho numa tarde de quarta-feira era um poderoso afrodisíaco. Na época do colégio ele praticava esportes e chegou a jogar hóquei no gelo quando fez intercâmbio nos Estados Unidos. Estudou os últimos dois anos escolares em Saint Paul e foi eleito o melhor estrangeiro da liga estudantil de Minnesota. Por causa disso foi disputado por universidades que lhes ofereceram bolsas estudantis e todas as vantagens advindas do fato de ser estrela do esporte.

Estava bem encaminhado na vida se não fosse por um acidente de carro que lhe tirou um percentual de visão periférica e alguma articulação do cotovelo. Ficou desiludido e voltou para o Brasil. Foi ao centro da cidade em busca de algum emprego, entretanto não tinha treinamento, experiência ou habilidade específica. Por intermédio de um tio, ou parente próximo, conseguiu emprego no banco onde trabalha até hoje. Seu maior plano até então era se aposentar com saúde pela previdência social.

Dormiu antes do final do primeiro tempo e quando acordou já estava escuro. Acreditava que a desvantagem de morar sozinho era a de que em momentos como esse tudo parecia abandonado até que você mesmo se levantasse e fosse acendendo as luzes para dar vida à casa. O telejornal da noite deixava de iluminar seu pequeno mundo. Passava um chato que gritava. Desliga a televisão e abre a geladeira. Enquanto admirava seu conteúdo, coçava a barriga por baixo da camisa durante um longo bocejo. Nada de interessante.

12/04/2011

O Pirata

Este conto participou da Antologia "Das Palavras", Editora Guemanisse.

O plantão começara numa noite de sexta de muita chuva. Movimento na delegacia com gente chegando e saindo. Muitos barulhos e em bom volume eram inevitáveis. Tudo aquilo configurava um quadro que José Carlos não desejava. Já se sentia velho para uma função que assumiu tarde demais na vida. Passou no concurso para delegado de polícia depois dos quarenta e cinco anos por insistência da mulher.

Chegou à sua mesa rogando praga contra o guarda-chuva esquecido em algum lugar. O cabelo ainda pingava sobre alguns papéis deixados por alguém. Gostaria de ser mais organizado às vezes. Dessa forma teria realizado mais e melhor os seus projetos de vida. Agora só conseguia pensar quando aquele plantão iria terminar.

Em busca de um café foi passando pelo corredor. Parou para falar com os colegas, outros cumprimentou com a cabeça. Andando ainda falou do Fluminense ou do ventilador quebrado. Torcia pelos dois: o time e o bom funcionamento do aparelho. Ambos faziam muita falta: por causa do excesso de volantes no meio-campo e dos incontáveis dias de calor.

Alguém o chamou pelo sobrenome. No fundo não gostava de ser chamado assim. Pensava estar chamando por seu pai, ou seu avô. Uma ilusão auditiva. Demorou a se acostumar com isso. O Évio tinha vindo da rua, chegou molhado também. Bom garoto, bastante profissional. Viu muito filme de tiro na juventude. Disse que precisava de auxílio com um senhor que trouxe da rua. Além do mais se não visse aquilo poderia ficar desacreditado. José Carlos foi atrás de forma mecânica, quase se arrastando.

Um senhor regulando com a sua idade. Podia ter netos até. Usava uma bandana na cabeça e um colete. Sentou-se à mesa com o velho do outro lado. Évio soprou ao seu ouvido se tratar de um pirata. Nunca se vira algo parecido naqueles anos de polícia. José Carlos achou que aquilo devia ser sacanagem. Fez menção de levantar-se quando foi demovido pelo jovem colega a sentar e ouvir o resto. Não acreditava que ele ia insistir em alguma piada e deu um crédito ao rapaz.

Se era pirata não usava tapa-olho e isso foi quase uma decepção. Évio despejou em cima da mesa o que apreendeu do senhor. Um gancho com uma base na qual que ele colocava a mão por dentro, segurando-o pelo ferro e um arcabuz. Achou linda aquela peça, cheia de adornos, muito bem conservada (se conseguisse, levaria para casa). José Carlos sentiu-se velho e obsoleto como aquela primitiva pistola.

Perguntou se ele cometera algum crime. Por que fora detido. Era crime ser pirata? Afinal, a Esquadra Espanhola não ia aparecer na Praça XV. O impacto da surpresa daquele bucaneiro na sua presença aniquilara essas dúvidas. Évio disse que aquele estava causando transtorno aos passantes. Algumas senhoras reuniram-se para chamar a polícia quando ele passou e desceu para ver do que se tratava.

O delegado não achou graça. Na verdade, estava fascinado. Os amigos da rua preferiam os cowboys. Brincadeiras de tiros com a boca, cavalos de cabo de vassoura e diligências de bicicletas. José Carlos preferia navegar em busca de tesouros de chocolate e galeões de sofá. Sempre desejou ser valente como um pirata. Outras crianças ainda gostariam de ser astronautas.

Por um minuto chegou a odiar todo mundo que não fosse pirata. Detestar aquele ambiente de trabalho que não suportava. Os pais que não o incentivaram. Preferiam que ele fosse contador. A mulher impondo a ele ser algo para ela ter outra casa, outro carro. Aquele senhor, sim, que ousara sonhar. Estava disposto a montar sua tripulação e singrar os mares quando foi impedido por velhas rancorosas que não sabem o que é uma bujarrona e o quanto vale uma onça espanhola.

José Carlos lembrou dos bailes de carnaval da sua juventude. Não de forma jocosa, mas de como gostava de se fantasiar (não abria mão do tapa-olho) e de viver a fantasia. Lembrou da banda que montou com os vizinhos e deu a sugestão do nome “Os Corsários”. Do sucesso que faziam na matinês e nos bailes, os mesmos da infância. Queria ser Lennon, queria ser McCartney, queria ser Harrison, queria ser Starr. A estrela apagou e ele tinha que ser alguém na vida. Ele era agora um fantasma dos carnavais passados.

Pediu ao Évio que retivesse o gancho e o arcabuz. Deveria fazer contato com algum familiar do idoso e encaminhá-lo aos assistentes sociais, se necessário. Era noite de sexta-feira, chovia muito, a delegacia estava cheia, não tinha ventilador e o plantão estava só começando. Não tinha conseguido ainda nem tomar um café.